sexta-feira, 12 de março de 2010

UNESP 2010


Pensar em nada

A maravilha da corrida: basta colocar um pé na frente do outro.
Assim como numa família de atletas um garoto deve encontrar
certa resistência ao começar a fumar, fui motivo de piada
entre alguns parentes – quase todos intelectuais – quando souberam
que eu estava correndo. “O esporte é bom pra gente”, disse
minha avó, num almoço de domingo. “Fortalece o corpo e emburrece
a mente.”
Hoje, dez anos depois daquele almoço, tenho certeza de que
ela estava certa. O esporte emburrece a mente e o mais emburrecedor
de todos os esportes inventados pelo homem é, sem sombra
de dúvida, a corrida – por isso que eu gosto tanto.
Antes que o primeiro corredor indignado atire um tênis em
minha direção (número 42, pisada pronada, por favor), explicome.
É claro que o esporte é fundamental em nossa formação.
Não entendo lhufas de pedagogia ou pediatria, mas imagino que
jogos e exercícios ajudem a formar a coordenação motora, a percepção
espacial, a lógica e os reflexos e ainda tragam mais outras
tantas benesses ao conjunto psico-moto-neuro-blá-blá-blá.
Quando falo em emburrecer, refiro-me ao delicioso momento do
exercício, àquela hora em que você se esquece da infiltração no
teto do banheiro, do enrosco na planilha do Almeidinha, da extração
do siso na próxima semana, do pé na bunda que levou da
Marilu, do frio que entra pela fresta da janela e do aquecimento
global que pode acabar com tudo de uma vez. Você começa a
correr e, naqueles 30, 40, 90 ou 180 minutos, todo esse fantástico
computador que é o nosso cérebro, capaz de levar o homem
à Lua, compor músicas e dividir um átomo, volta-se para uma
única e simplíssima função: perna esquerda, perna direita, perna
esquerda, perna direita, inspira, expira, inspira, expira, um, dois,
um, dois.
A consciência é, de certa forma, um tormento. Penso, logo
existo. Existo, logo me incomodo. A gravidade nos pesa sobre
os ombros. Os anos agarram-se à nossa pele. A morte nos espreita
adiante e quando uma voz feminina e desconhecida surge
em nosso celular, não costuma ser a última da capa da Playboy,
perguntando se temos programa para sábado, mas a mocinha do
cartão de crédito avisando que a conta do cartão “encontra-se
em aberto há 14 dias” e querendo saber se “há previsão de pagamento”.
Quando estamos correndo, não há previsão de pagamento.
Não há previsão de nada porque passado e futuro foram anulados.
Somos uma simples máquina presa ao presente. Somos
reduzidos à biologia. Uma válvula bombando no meio do peito,
uns músculos contraindo-se e expandindo-se nas pernas, um ou
outro neurônio atento aos carros, buracos e cocôs de cachorro.
Poder, glória, dinheiro, mulheres, as tragédias gregas, tá
bom, podem ser coisas boas, mas naquele momento nada disso
interessa: eis-nos ali, mamíferos adultos, saudáveis, movimentando-
nos sobre a Terra, e é só.
(Antonio Prata. Pensar em nada. Runner’s World, n.° 7,
São Paulo: Editora Abril, maio/2009.)

Um comentário:

Tiago Antunes disse...

A mais pura verdade. Abraço

Tiago Antunes
www.vodoismax.blogspot.com